Experiências agroecológicas e incidência política são destaques de intercâmbio na Alemanha

Visitar uma feira orgânica, conhecer experiência agroecológica, apresentar ações realizadas no Brasil em torno da incidência política e fortalecimento da agricultura familiar,  participar das discussões sobre a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (UNDROP), e colaborar na oficina preparatória da sociedade civil para a Conferência Políticas contra a Fome, que reuniu representantes de cerca de 15 países. 

Essas foram algumas das vivências durante o intercâmbio Brasil – Alemanha, promovido pelo projeto “Cultivando Futuros: transição agroecológica justa em sistemas alimentares do semiárido brasileiro”, realizado pela AS-PTA, Brot für die Welt e Rede ATER Nordeste de Agroecologia; com financiamento do Ministério Federal da Agricultura, Alimentação e Identidade Regional da Alemanha (BMLEH, sigla em alemão).

Durante o intercâmbio foi possível conhecer a Öko Feldtage 2025, uma feira orgânica  realizada no estado da Saxônia, que apresenta práticas e pesquisas voltadas à agropecuária orgânica. A diretora da Central da Caatinga, Gizeli Maria Oliveira, uma das intercambistas, destacou que a feira proporcionou conhecer outras experiências “que podem ser usadas por agricultores familiares, com tecnologias apropriadas, maquinários mais leves, que podem facilitar a mão de obra do agricultor no campo; do plantio no roçado e favorecer também o aumento da produção de alimentos agroecológicos e orgânicos dentro da agricultura familiar na nossa região semiárida”.

Outra exposição que chamou a atenção da delegação brasileira, foi a experiência dos Padeiros Independentes, que utilizam um equipamento projetado para moer o trigo e obter uma farinha de grão integral muito fina, atendendo à demanda de pequenos agricultores e padeiros. “É uma solução ideal para agricultores de pequena escala, onde você pode manter o produto, não precisa vendê-lo. Na Alemanha, temos um grande problema: faltam soluções de armazenamento e soluções de moagem e, se você levar o produto a um grande moinho, receberá pouca farinha de volta, e será misturada; e você não tem controle sobre isso”, explica o padeiro independente, Lucas Kähler. 

“Há soluções (equipamentos) móveis para que possamos ter uma economia compartilhada, em que os agricultores possam usar o sistema de moagem juntos e criar mais independência para pequenos agricultores, padeiros e revendedores”, complementa Lucas.

A integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) que também participou do intercâmbio representando o Polo da Borborema, na Paraíba, Roselita Victor Albuquerque, enfatiza a inspiração dessa iniciativa apresentada pelos Padeiros Independentes:  “tem um equipamento que é simples, que pode inclusive facilitar a gente a melhorar a produção do flocão da paixão lá na Paraíba e outros lugares do Semiárido brasileiro”.

A delegação também participou do evento “Futuros dos sistemas alimentares: impulso brasileiro para a Alemanha”, organizado pela Brot für die Welt. Na ocasião, os/as participantes apresentaram experiências de transição dos sistemas agroalimentares a partir da incidência da sociedade civil na construção de políticas públicas, a exemplo dos Programas Um Milhão de Cisternas (P1MC), Uma Terra e Duas Águas (P1+2), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), e do Programa Aquisição de Alimentos (PAA), inclusive na sua modalidade de compra e doação de sementes. Foram partilhadas ainda informações relacionadas à atuação da sociedade civil e redes de entidades em órgãos públicos como Consea, Comissão Nacional de Agroecologia e Agricultura Orgânica (CNAPO) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf).

A integrante da Brot für die Welt, Beatriz Bohner, ressaltou que a troca de experiências do Brasil e do projeto Cultivando Futuros, contribui para que a “Alemanha também possa aprender, principalmente na participação civil, para poder transformar os sistemas alimentares e promover a agroecologia”. 

Nesse sentido, a diretora de projetos internacionais do BMLEH, Johanna Scholz, frisa a importância de ações coletivas para promover a segurança alimentar, objetivo que ainda é um dos maiores desafios do mundo. “Os problemas que temos, local e globalmente, só podem ser resolvidos em conjunto; e é por isso que acho que a Alemanha pode se beneficiar enormemente de projetos como o Cultivando Futuros, porque não temos muitos conselhos de política alimentar e, portanto, é com essa experiência que aprendemos”. 

Em outubro deste ano, será a vez da Alemanha conhecer de perto experiências de incidência no Brasil e participar do Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), que acontecerá em outubro, no município de Juazeiro, na Bahia. O consultor de projetos da GFA-BMLEH, Denis Ünver, que acompanha o Cultivando Futuros, destaca: “É muito importante ver a realidade no campo e é por isso que estou animado para visitar o projeto Cultivando Futuros, que é um projeto muito ambicioso, com muito foco na metodologia, o que é muito importante para ter um impacto de longo prazo e, por isso, que gostaria de ver essas experiências no contexto do Congresso de Agroecologia, que também trará mais vozes, mais experiências diferenciadas, o que acho que será uma reunião muito proveitosa também para nós aqui na Alemanha”.

UNDROP

O intercâmbio Brasil-Alemanha também possibilitou a participação em um Workshop estratégico, com o tema “Erradicar a fome através do empoderamento de camponeses e trabalhadores rurais”. O encontro, que foi organizado pelo Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Camponeses e Outros Trabalhadores Rurais em colaboração com o Instituto Alemão de Direitos Humanos, teve como objetivo aprofundar a compreensão sobre as políticas de combate à fome e os direitos dos camponeses e trabalhadores rurais; além da integração dessas iniciativas.

A discussão teve como destaque a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (UNDROP), um marco no reconhecimento dos direitos das populações rurais, como destaca a integrante da FIAN Internacional, Ana María Franco: “É um instrumento que reconhece que os camponeses, pescadores, pastores, mulheres rurais e trabalhadores agrícolas sofreram discriminação e violações históricas. A Declaração reconheceu as obrigações dos Estados de respeitar, proteger e garantir todas essas populações rurais; mas também reconheceu seus direitos, não apenas aqueles que já estão incorporados em outros instrumentos legais, mas também os chamados direitos emergentes que incluem, por exemplo: o direito à terra, o direito à água para a agricultura, o direito à soberania alimentar, o direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável, entre outros”. 

Luciano Silveira, da AS-PTA e representante da Rede ATER Nordeste na CNAPO, reforça que “é preciso valorizar todas as conquistas e a afirmação de direitos, que são muitas, em especial para as comunidades camponesas, da agricultura familiar e a sua diversidade de formas de representação. Essa declaração nos permitirá enfrentar os enormes desafios e ameaças que as empresas e as grandes corporações de energias renováveis e também do agronegócio vêm causando, ameaçando nossos territórios. Portanto, é preciso que no Brasil a gente fortaleça essa ação junto à sociedade civil para que o governo brasileiro garanta a efetividade dessas recomendações dentro da sua legislação”.

Dessa forma, aderir à UNDROP é fundamental para garantir os direitos das famílias rurais que, constantemente, são ameaçadas ou têm seus territórios invadidos por grandes empreendimentos do agronegócio, mineração ou de energias renováveis que desconsideram o modo de viver tradicional das comunidades. Esse cenário de desrespeito se repete em vários países. 

O workshop contou com a representação de mais de 10 países que identificaram os principais desafios e as boas práticas já realizadas em relação aos direitos dos/as camponeses/as, pequenos/as agricultores/as, pescadores/as, pastores/as e outros trabalhadores/as rurais em todo o mundo. Experiências do Brasil como o CONSEA, PAA, PNAE e da participação ativa das redes de entidades na incidência de políticas públicas voltadas à Agroecologia e agricultura familiar, a exemplo da Rede ATER Nordeste de Agroecologia, também foram destacadas nas discussões. 

Conferência Políticas contra a Fome

A Conferência Políticas Contra a Fome foi realizada entre os dias 23 e 25 de junho em Berlim, na Alemanha, com a participação de representantes de organizações da sociedade civil e de governos de cerca de 15 países. A Conferência foi organizada pelo BMLEH.

No evento, foram compartilhadas experiências em torno das abordagens baseadas em direitos humanos para a segurança alimentar; realizados debates atuais sobre o direito à alimentação e as diretrizes do Comitê de Segurança Alimentar Mundial das Nações Unidas (CFS); sobre perspectivas da garantia realização do direito à alimentação; e como os atores (Estado e sociedade civil) moldam o futuro do direito à alimentação, dentre outros. O Consea do Brasil foi citado diversas vezes como referência para o debate sobre políticas públicas contra a fome. 

Ao longo da Conferência também houve discussões  sobre o alimento estar sendo utilizado como arma de guerra em Gaza; quando civis são alvejados por tiros do exército isralense enquanto tentam chegar a locais de distribuição de ajuda humanitária. Foi importante pautar esse tema que é urgente, pois as pessoas em Gaza precisam fazer a escolha absurda e desumana, entre morrer de fome ou correr o risco de serem mortas enquanto tentam obter comida.

Durante a conferência, grupos de trabalho foram organizados para discutir e propor ações a serem apresentadas, com foco na agenda global da segurança alimentar e nutricional. Para isso, foram divididos grupos com as seguintes temáticas: Acesso à terra; Empoderamento de mulheres e meninas; Cadeias de suprimentos agrícolas sustentáveis e responsáveis e Bioeconomia como um instrumento para garantir a segurança alimentar. 

Importante destacar que o conceito de bioeconomia foi muito estimulado pelo governo brasileiro na Conferência Global de Alimentação, realizada este ano. No entanto, esse modelo não fortalece a agricultura familiar, mas sim as grandes corporações. A bioeconomia continua reproduzindo os padrões de poder, onde não existe a produção de alimentos de forma justa para o consumo da população. 

“A gente sabe que, se não resolver os problemas estruturais das grandes cadeias corporativas que comandam os sistemas alimentares, a gente vai continuar consumindo recursos, mesmo com uma perspectiva mais verde. Isso vai gerar exclusão social e degradação”, afirma Luciano Silveira. 

A bioeconomia não dialoga com os princípios da agroecologia, como reforça o consultor de políticas para agricultura da Brot für die Welt, Stig Tanzmann. “É muito importante entender que a bioeconomia não é bem definida, não se baseia no direito à alimentação ou na agroecologia, é mais uma compreensão econômica da natureza. Portanto, trata-se da exploração da natureza ou do uso da natureza apenas para fins econômicos, enquanto a agroecologia é um conceito que se baseia na ecologia, tenta atender ao direito à alimentação e tenta criar independência para os agricultores”. 

Stig exemplifica ainda: “Talvez, se houver quantidade suficiente, você possa até produzir biogás, mas não é como a bioeconomia que vemos no Brasil, onde se produz apenas soja, cana-de-açúcar ou milho para agrocombustíveis. É isso que é a bioeconomia de larga escala;  é isso que estamos criticando e é aí que dizemos que isso nunca poderá ser agroecologia; e a agroecologia nunca poderá fazer parte disso”.

Com as discussões acaloradas sobre essa temática, durante a Conferência, Stig complementa: “Esperamos conseguir influenciar o governo alemão ou o Ministério da Agricultura da Alemanha nessa direção (da Agroecologia).  Em geral, (a Conferência) é um lugar muito bom para a sociedade global contribuir com a agenda alemã do Ministério da Agricultura da Alemanha, para suas negociações internacionais”. 

A conferência Políticas contra a Fome também é considerada um espaço de preparação para as discussões da COP-30, que será realizada em novembro no Brasil. 

Texto: Lorena Simas | Comunicação Rede ATER NE de Agroecologia

Fotos: Lorena Simas e Conferência Políticas Contra a Fome

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